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Belo Horizonte e Ouro Preto, Minas Gerais, Brazil
Doutora e Mestra em Direito Privado pela PUC Minas. Especialista em Direito Processual e Direito Civil. http://lattes.cnpq.br/0058010358863049 Pesquisadora do Centro de Estudos em Biodireito - CEBID: www.cebid.com.br Professora Assistente II do Departamento de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP: http://www.direito.ufop.br/ Advogada do NAJOP/UFOP Vice Coordenadora do Comitê de Ética em Pesquisa da UFOP - CEP/UFOP Blog: http://iaraufop.blogspot.com/ http://www.arraeseditores.com.br/aconselhamento-genetico-e-responsabilidade-civil.html

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quinta-feira, 19 de junho de 2014

Idoso. Regime de bens. Inconstitucionalidade

Processo:      Apelação Cível nº
Relator:          Luiz Fernando Boller
Data: 2011-12-01
Apelação Cível nº , de Criciúma
 
Relator: Des. Luiz Fernando Boller
 
APELAÇÃO CÍVEL - PROCEDIMENTO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA - MODIFICAÇÃO DO REGIME MATRIMONIAL DE BENS - SENTENÇA QUE DECLAROU EXTINTO O PROCESSO POR AUSÊNCIA DAS CONDIÇÕES DA AÇÃO - LEGITIMIDADE E INTERESSE PARA PLEITEAR A RESPECTIVA ALTERAÇÃO, QUE ENCONTRARIA RESPALDO NO ART. 1.639, § 2º, DO CC - MATRIMÔNIO CONTRAÍDO QUANDO OS INSURGENTES POSSUÍAM MAIS DE 60 (SESSENTA) ANOS DE IDADE - SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS - PRETENDIDA MODIFICAÇÃO PARA O REGIME DE COMUNHÃO UNIVERSAL - INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO CÓDIGO CIVIL E DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - CONCLUSÃO DE QUE A IMPOSIÇÃO DE REGIME DE BENS AOS IDOSOS SE REVELA INCONSTITUCIONAL - AFRONTA AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - LEGISLAÇÃO QUE, CONQUANTO REVESTIDA DE ALEGADO CARÁTER PROTECIONISTA, MOSTRA-SE DISCRIMINATÓRIA - TRATAMENTO DIFERENCIADO EM RAZÃO DE IDADE - MATURIDADE QUE, PER SE , NÃO ACARRETA PRESUNÇÃO DA AUSÊNCIA DE DISCERNIMENTO PARA A PRÁTICA DOS ATOS DA VIDA CIVIL - NUBENTES PLENAMENTE CAPAZES PARA DISPOR DE SEU PATRIMÔNIO COMUM E PARTICULAR, ASSIM COMO PARA ELEGER O REGIME DE BENS QUE MELHOR ATENDER AOS INTERESSES POSTOS - NECESSIDADE DE INTERPRETAR A LEI DE MODO MAIS JUSTO E HUMANO, DE ACORDO COM OS ANSEIOS DA MODERNA SOCIEDADE, QUE NÃO MAIS SE IDENTIFICA COM O ARCAICO RIGORISMO QUE PREVALECIA POR OCASIÃO DA VIGÊNCIA DO CC/1916, QUE AUTOMATICAMENTE LIMITAVA A VONTADE DOS NUBENTES SEXAGENÁRIOS E DAS NOIVAS QUINQUAGENÁRIAS - ENUNCIADO Nº 261, APROVADO NA III JORNADA DE DIREITO CIVIL, QUE ESTABELECE QUE A OBRIGATORIEDADE DO REGIME DE SEPARAÇÃO DE BENS NÃO SE APLICA QUANDO O CASAMENTO É PRECEDIDO DE UNIÃO ESTÁVEL INICIADA ANTES DE OS CÔNJUGES COMPLETAREM 60 (SESSENTA) ANOS DE IDADE - HIPÓTESE DOS AUTOS - APELANTES QUE CONVIVERAM COMO SE CASADOS FOSSEM NO PERÍODO COMPREENDIDO ENTRE 1964 E 2006, QUANDO CONTRAÍRAM MATRIMÔNIO - CONSORTES MENTALMENTE SADIOS - PARECER DA PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA NO SENTIDO DE SE ADMITIR A PRETENDIDA ALTERAÇÃO - SENTENÇA OBJURGADA QUE, ALÉM DE DENEGAR INDEVIDAMENTE A PRESTAÇÃO JURISDICIONAL, REVELA-SE IMPEDITIVA DO DIREITO DE ACESSO À JUSTIÇA - DECISUM CASSADO - REGIME DE BENS MODIFICADO PARA O DE COMUNHÃO UNIVERSAL - RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
 
"Deduzir, com pretensão de valor irrefutável e aplicação geral, homens e mulheres, considerados no ápice teórico do ciclo biológico e na plenitude das energias interiores, à condição de adolescentes desvairados, ou de neuróticos obsessivos, que não sabem guiar-se senão pelos critérios irracionais das emoções primárias, sem dúvida constitui juízo que afronta e amesquinha a realidade humana, sobretudo quando a evolução das condições materiais e espirituais da sociedade, repercutindo no grau de expectativa e qualidade de vida, garante que a idade madura não tende a corromper, mas a atualizar as virtualidades da pessoa, as quais constituem o substrato sociológico da noção da capacidade jurídica. [...] Não é tudo. A eficácia restritiva da norma estaria, ainda, a legitimar e perpetuar verdadeira degradação, a qual, retirando-lhe o poder de dispor do patrimônio nos limites do casamento, atinge o cerne mesmo da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República (art. 1º, inc. III, da Constituição Federal), não só porque a decepa e castra no seu núcleo constitutivo de razão e vontade, na sua capacidade de entender e querer, a qual, numa perspectiva transcendente, é vista como expressão substantiva do próprio Ser, como porque não disfarça, sob as vestes grosseiras de paternalismo insultuoso, todo o peso de uma intromissão estatal indevida em matéria que respeita, fundamentalmente, à consciência, intimidade e autonomia do cônjuge" (TJSP. Apelação Cível nº 007512-4/2-00, Relator: Desembargador Cezar Peluso, São José do Rio Preto, j. 18/08/1998).
 
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº , da comarca de Criciúma (Vara da Família), em que é apelante Z. C. C. R. e outro:
 
A Quarta Câmara de Direito Civil decidiu, por votação unânime, conhecer do recurso e dar-lhe provimento. Custas legais.
 
O julgamento, realizado nesta data, foi presidido pelo Excelentíssimo Senhor Desembargador Eládio Torret Rocha, com voto, e dele participou o Excelentíssimo Senhor Desembargador Substituto Ronaldo Moritz Martins da Silva. Funcionou como Representante do Ministério Público, o Excelentíssimo Senhor Doutor Mário Gemin.
 
Florianópolis, 1º de dezembro de 2011.
 
Luiz Fernando Boller
 
Relator
 
 
 
RELATÓRIO
 
Cuida-se de apelação cível interposta por J. F. R. e Z. C. C. R., contra decisão prolatada pelo juízo da Vara da Família da comarca de Criciúma que, com fulcro no art. 267, inc. VI, do Código de Processo Civil, declarou extinta a ação de Alteração de Regime de Bens nº 020.11.010952-0 (fls. 58/59).
 
Malcontentes, os insurgentes alegam que estão evidenciadas as condições da ação, visto que possuem legitimidade para pleitear o direito invocado, cujo interesse de agir consubstancia-se no objetivo de modificar o regime matrimonial que lhes foi imposto quando oficializaram, através do casamento, a união estável que perdurava desde 1964, pleito que, em seu entender, encontra respaldo no art. 1.639, § 2º, do Código Civil.
 
Asseveraram, de outra banda, que a obrigatoriedade do regime de separação obrigatória de bens às pessoas com idade superior a 70 (setenta) anos afronta o princípio da dignidade da pessoa humana, avultando, mais, que o art. 1.641, inc. II, do aludido codex, seria inconstitucional, termos em que bradaram pelo conhecimento e provimento do reclamo (fls. 62/67).
 
O recurso foi recebido nos efeitos devolutivo e suspensivo (fl. 71).
 
Ascendendo a esta Corte, os autos foram a mim distribuídos em 26/07/2011 (fl. 74).
 
Em parecer da lavra do Exmo. Sr. Dr. Tycho Brahe Fernandes, a Procuradoria-Geral de Justiça opinou pelo conhecimento e provimento do recurso, alterando-se o regime de separação obrigatória de bens para o de comunhão parcial (fls. 76/78).
 
Este é o relatório.
 
 
 
VOTO
 
Conheço da presente insurgência, visto que demonstrados os respectivos pressupostos de admissibilidade.
 
Em princípio, convém destacar que o inc. II do art. 1.641 do Código Civil, com a redação alterada pela Lei nº 12.344/10, disciplina que é obrigatório o regime da separação de bens no casamento da pessoa maior de 70 (setenta) anos, disposição que fulminaria, de plano, a pretensão dos recorrentes.
 
Todavia, tenho para mim que a interpretação do aludido dispostivo não pode ser realizada isoladamente, sem se atentar para os princípios que norteiam a ordem constitucional vigente, sobretudo o da dignidade da pessoa humana.
 
O critério etário utilizado pelo legislador teve por finalidade precípua a proteção daquele que se presumiu encontrar-se em estado de vulnerabilidade, permitindo ser mais facilmente ludibriado em razão de eventual interesse de outrem em relação ao seu patrimônio particular.
 
Contudo, tal disposição legal implica discriminação ao presumir que o nubente maior de 70 (setenta) anos de idade não possui eficiente capacidade de discernimento, restrição que não pode ser admitida, por revelar-se contrária ao atual ordenamento.
 
Neste sentido, o art. 3º da Constituição Federal de 1988 dispõe que constitui um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação, merecendo igual destaque o respectivo art. 5º, que estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
 
Rolf Madaleno, neste tocante, salienta que
 
Em face do direito à igualdade e à liberdade ninguém pode ser discriminado em função do seu sexo ou da sua idade, como se estas fossem causas naturais de incapacidade civil. Atingem e ferem de morte direito cravado na porta de entrada da Carta Política de 1988, cuja nova tábua de valores põe em linha de prioridade o princípio da dignidade humana, diretriz já preconizada apela Súmula nº 377 do STF, justamente editada para ordenar a separação dos bens adquiridos na constância do casamento, como se tratasse do regime de comunhão parcial de bens e impedir o enriquecimento indevido (Curso de Direito de Família. Rio de Janeiro: 2011. pp. 791-792).
 
Não diverge Maria Berenice Dias, de cujo escólio se afere que
 
A limitação, além de odiosa, é inconstitucional, pois, ao se falar no estado da pessoa, toda cautela é pouca. A plena capacidade é adquirida quando do implemento da maioridade e só pode ser afastada em situações extremas e por meio do processo judicial de interdição, que dispõe de rito especial (arts. 1.177 a 1.186 do CC). É indispensável não só a realização de perícia, mas também é obrigatória audiência de interrogatório pelo magistrado. Raros processos são revestidos de tantos requisitos formais, sendo imperiosa a publicação da sentença na imprensa por 3 (três) vezes. Tal rigorismo denota o extremo cuidado quando se trata da capacidade da pessoa (Art. 1.641: inconstitucionais limitações ao direito de amar. Disponível em: < http://www.mariaberenicedias.com.br/pt/regime-de-bens.dept >. Acesso em 01/12/2011).
 
E segue a aludida doutrinadora avultando que "frente ao casamento, no entanto, tudo isso é olvidado. Quando alguém, após atingir a idade de 60 (sessenta) anos, quiser casar" , ainda que não esteja "impedido de fazê-lo, não pode dispor sobre as questões patrimoniais e escolher livremente o regime de bens" ( op. cit ).
 
Nesta senda, Marcelo Truzzi Otero sustenta que o art. 258, § único, inc. II, do Código Civil de 1916 - cuja disposição foi repetida no novo codex - revelava "o conceito de uma distante época, onde o individualismo e a preocupação em proteger e preservar a família legítima justificavam a ingerência exercida pelo Estado sobre a vontade individual" (A separação legal de bens para os sexagenários ou quinquagenárias - Uma afronta à dignidade da pessoa humana. in Jornal Síntese. Porto Alegre: Editora Síntese, v. 51, maio/2001, p. 10).
 
A disposição legal que limita, pois, a liberdade de escolha do regime de bens do nubente maior de 70 (setenta) anos de idade, além de revelar-se discriminatória - já que não se pode presumir que a maturidade natural dos idosos automaticamente prejudique a sua capacidade de discernir acerca de quais relações lhes poderiam ser prejudiciais -, também viola o princípio da dignidade da pessoa humana, que segundo Alexandre de Moraes,
 
[...] concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas do Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todos estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos (Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 16).
 
De destacar a decisão da lavra do Ministro Cezar Peluso - à época Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo -, que, com sensibilidade singular, manifestou o entendimento no sentido de que a obrigatoriedade do regime de separação de bens ao idoso constitui restrição do direito de liberdade já assegurado pela Carta Magna:
 
Deduzir, com pretensão de valor irrefutável e aplicação geral, homens e mulheres, considerados no ápice teórico do ciclo biológico e na plenitude das energias interiores, à condição de adolescentes desvairados, ou de neuróticos obsessivos, que não sabem guiar-se senão pelos critérios irracionais das emoções primárias, sem dúvida constitui juízo que afronta a amesquinha a realidade humana, sobretudo quando a evolução das condições materiais e espirituais da sociedade, repercutindo no grau de expectativa e qualidade de vida, garante que a idade madura não tende a corromper, mas a atualizar as virtualidades da pessoa, as quais constituem o substrato sociológico da noção da capacidade jurídica. [...] Não é tudo. A eficácia restritiva da norma estaria, ainda, a legitimar e perpetuar verdadeira degradação, a qual, retirando-lhe o poder de dispor do patrimônio nos limites do casamento, atinge o cerne mesmo da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República (art. 1º, inc. III, da Constituição Federal), não só porque a decepa e castra no seu núcleo constitutivo de razão e vontade, na sua capacidade de entender e querer, a qual, numa perspectiva transcendente, é vista como expressão substantiva do próprio Ser, como porque não disfarça, sob as vestes grosseiras de paternalismo insultuoso, todo o peso de uma intromissão estatal indevida em matéria que respeita, fundamentalmente, à consciência, intimidade e autonomia do cônjuge. E aqui, para agravo da classificação jurídica que, como toda legislação, opera, distinguindo entre categorias de cônjuges, fundado em critérios factuais aleatórios, o velho art. 258, § único, inc. II, do Código Civil, perpetra discriminação não menos desarrazoada e injusta, porque não há norma nem princípio jurídico que impeça a alguém, em razão de idade avançada e de envolvimento afetivo, doar bens ao parceiro, antes ou durante o concubinato, e sequer no decurso de relacionamento efêmero que reúna todos os ingredientes de uma aventura amorosa. Tampouco estão os mais jovens imunes aos riscos patrimoniais da ilusão e da farsa . Por que é, pois, que, sob pretexto de vulnerabilidade psíquica, subentendida como doença peculiar da instituição matrimonial, haveriam de ser tolhidos na mais nobre das manifestações humanas, que é o exercício da generosidade e da justiça, apenas os cônjuges os quais não raro têm largas razões para compartilhar e repartir por conta de injunção normativa, esta, sim, decrépita, e cuja menor extravagância está em desestimular, por reação legítima em resguardo da autonomia, ética e da liberdade jurídica, que relações não matrimoniais se convertam em casamento? E atentado considerável à estabilidade do ordenamento jurídico é já o descrédito notório, que, provocado pela inconveniência dessa conversão, capaz de satisfazer anseios genuínos e evitar incertezas danosas à ordem social, levaria, ou vem levando, à dessuetude dos casamentos tardios. [...] São estas todas razões mais que bastantes por negar vigor ao artigo 258, parágrafo único, II, do Código Civil, em especial na sua imodesta conseqüência de proibir alienações, gratuitas ou onerosas, entre os cônjuges. [...] (TJSP. Apelação Cível nº 007512-4/2-00, São José do Rio Preto, j. 18/08/1998 - grifei).
 
Não basta ao magistrado aplicar a norma vigente, perdendo de vista a sua função de pacificador social.
 
É necessário, sim, que o aplicador do Direito tenha consciência jurídica contemporânea, que, nos dizeres do Ministro Cezar Peluso, "não pode tolerar a consagração nomóloga de presunção legal absoluta, pois, não correspondendo à verdade dos fatos originários nem comparando justificação autônoma" , assume contornos de "ficção ilegítima, suscetível de invalidação jurídica", de modo que "a evolução das condições materiais e espirituais da sociedade, repercutindo no grau de expectativa e qualidade de vida, garante que a idade madura não tende a corromper", mas, de fato, "a atualizar as virtudes da pessoa, as quais constituem o substrato sociológico na noção da capacidade jurídica" (TJSP. Apelação Cível nº 007512-4/2-00, São José do Rio Preto, j. 18/08/1998).
 
Neste sentido, o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil disciplina que na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
 
Maria Helena Diniz salienta que o dispositivo suso mencionado "indica ao magistrado o critério do fim social e o do bem comum como idôneos à adaptação da lei às novas exigências sociais e aos valores nela positivados" , de modo que estes elementos "são fórmulas gerais ou valorativas que uniformizam a interpretação, constituindo pontos referenciais para que se aprecia a lei a aplicar sob o prisma do momento da sua aplicação", objetivando, portanto, a adaptação e integração da norma ao caso concreto (Código Civil Anotado. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 7).
 
Nesta senda, prelecionam Eduardo Bittar e Guilherme de Assis Almeida que
 
O ato de aplicar o direito sempre envolve uma complexa abordagem da relação entre ser e dever-ser. Há aplicação em que existe o tratamento conjugado do dever-se com o ser, de modo a que o dever-ser torna-se ser. Em todo ato aplicativo interrompe-se a promessa de que algo venha a ser, para que efetivamente o seja; na aplicação, o dever-ser deixa de ser potência e torna-se ato. A norma em sua aplicação, passa de seu estado letárgico, estático, adentrando ao mundo do ser, no qual se insere com todas as problemática a ele inerentes; sua natureza de dever ser, seu sentido neutro e impassível, sua estrutura cristalina, sua perfeição apriorística, são apenas momentos do sentido antes de sua reificação. Percebe-se que a temática da aplicação envolve necessariamente a abordagem da interpretação, pois não há aplicação sem interpretação."(Curso de Filosofia do Direito. 4. ed., São Paulo: Atlas, 2005, p. 507).
 
In casu , a sentença vergastada repele a pretensão dos apelantes, sob o argumento de que estariam ausentes as condições da ação, simplista solução jurídica que, a meu ver, não se revela justa e, tampouco, adequada.
 
Segundo o que se tem, J. F. R. e Z. C. C. R. iniciaram relacionamento afetivo em 1964, convivendo como se casados fossem até a realização do matrimônio, em 13/10/2006 - o que ocorreu após o varão ter se divorciado da primeira esposa, L. M. G. da R. R. -, quando os nubentes contavam 85 (oitenta e cinco) e 61 (sessenta e hum) anos de idade, respectivamente, razão porque foi obrigatoriamente adotado o regime da separação de bens.
 
Avultando que se revelam plenamente capazes para a prática dos atos da vida civil, pretendem os recorrentes que seja determinada a modificação do regime para o de comunhão universal de bens, conforme autorizado pelo art. 1.639 do Código Civil, pleito que, a meu sentir, deve ser acolhido.
 
Isso porque, além de todo o já exposto, o Enunciado nº 261, aprovado na III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, estabelece que "a obrigatoriedade do regime da separação de bens não se aplica a pessoa maior de 60 (sessenta) anos, quando o casamento foi precedido de união estável iniciada dessa idade".
 
Neste sentido, as fotografias de fls. 29/38, assim como os documentos que comprovam a existência de prole comum (fls. 44, 49 e 53), corroboram a alegação de que os insurgentes conviveram maritalmente no período compreendido entre 1964 e 2006, circunstância que, nos termos do Enunciado sobredito, exclui a obrigatoriedade do regime de separação de bens.
 
Destarte, entendo que a extinção do feito com respaldo no art. 267, inc. VI, do Código de Processo Civil eqüivale à negativa da prestação jurisdicional e, por corolário, impeditiva do acesso à justiça, o que não pode ser admitido em um Estado dito Democrático de Direito, que tem por fundamento a dignidade da pessoa humana, devendo prevalecer - na carência de elemento probatório da ausência de capacidade psicológica -, a autonomia dos cônjuges para elegerem o regime de bens que melhor atender aos interesses do casal.
 
Ante o exposto, voto no sentido de se conhecer e dar provimento ao reclamo, cassando a sentença objurgada, determinando, via de conseqüência, a alteração do regime matrimonial dos nubentes para a comunhão universal de bens, competindo ao juízo a quo adotar as providencias necessárias para a respectiva retificação do registro de casamento de J. F. R. e Z. C. C. R., ressalvados os direitos de eventual prole advinda do já desfeito casamento do varão com L. M. G. da R. R.
 
Este é o voto.
 
 
Gabinete Des. Luiz Fernando Boller
 

fonte: http://ibdfam.org.br/jurisprudencia/2473/Idoso.%20Regime%20de%20bens.%20Inconstitucionalidade

4 comentários:

  1. Virgínia Borges SIlva27 de outubro de 2014 às 20:59

    Além da afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, através do tratamento diferenciado devido a idade; a necessidade de uma interpretação constitucional do Código Civil abarcando os anseios da sociedade moderna, já que a reforma em 2002 do referido Código deu-se embasado em um projeto de lei de 1975; a 3ª Jornada de Direito Civil em seu enunciado 261 aduz: " A obrigatoriedade do regime da separação de bens não se aplica a pessoa maior de sessenta anos, quando o casamento for precedido de união estável iniciada antes dessa idade". Aplicando-se todo o exposto no caso concreto, em que o casal vivia em união estável desde 1964, acertou o TJSP ao garantir a autonomia dos cônjuges em escolher em que tipo de regime de bens adotar em seu matrimônio, e não simplesmente aplicar o art. 1641 do Código Civil.

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  2. Paula Valério Henriques28 de outubro de 2014 às 12:23

    Sendo o Direito de Família um ramo do direito privado, via de regra, o Estado não intervém nas relações particulares, apenas quando é necessário. O que podemos perceber em tal caso é a interferência de maneira arbitrária por parte do Estado, visto que nada impede que um indivíduo com idade superior a 70 anos seja plenamente capaz e com total discernimento para decidir o que é melhor para o livre desenvolvimento de sua personalidade. Além disso, podemos perceber que o artigo 1.641, II CC ao definir o regime de separação obrigatória de bens no casamento de pessoas acima de 70 anos, fere princípios constitucionais como o da dignidade humana, igualdade e autonomia da vontade. Destaca-se também que a 3ª Jornada de Direito Civil em seu enunciado 261 dita: "A obrigatoriedade do regime da separação de bens não se aplica a pessoa maior de sessenta anos, quando o casamento for precedido de união estável iniciada antes dessa idade". Visto que o casal vivia em união estável desde 1964, a decisão do TJSP foi correta ao proceder com a interpretação do Código Civil de acordo com a Constituição Federal. Assim foi preservada a autonomia do casal em escolher o regime de bens que melhor lhes aprouver.

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  3. Paulo César Batista Nunes da Cunha13 de novembro de 2014 às 11:53

    Correto o entendimento do desembargador Luiz Fernando uma vez que o artigo 1641, II do CC02 deve ser interpretado à luz da Constituição da República em vigor, e esta aponta como um de seus objetivos, no artigo 3º: "IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".
    O ordenamento jurídico prescreve que a má-fé não se presume. No entanto, interpretar tal artigo da legislação civil de maneira literal seria ir de encontro à essa ideia. Ainda mais pelo fato de ser uma presunção absoluta (pois não admite prova contrária) de que um dos cônjuges estará se casando apenas para se beneficiar do patrimônio do outro.
    Não é possível presumir a senilidade de quem possui mais de 70 anos, pois esta deveria ser provada por meio de um processo de interdição.
    E por fim, é possível observar diversos outros métodos, em nosso ordenamento jurídico, capazes de dilapidar o patrimônio e burlar esse artigo.

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  4. Apesar da disposição do art. 1.641, II, do Código Civil, que determina ser obrigatório o regime da separação de bens no casamento das pessoas maiores de 70 anos, o entendimento predominante da doutrina e jurisprudência atual é o de que tal dispositivo é inconstitucional. Os fundamentos para esse posicionamento são coerentes tendo em vista levarem em conta o contexto em que essa norma foi criada, qual seja o de uma época em que o Estado intervinha sobremaneira na autonomia privada a fim de resguardar a família legítima. Tal concepção já não mais persiste hodiernamente em face dos novos meandros que a família tem assumido. Nesse sentido, o juiz deve na aplicação da lei atender aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum conforme disposto no artigo 5° da Lei de Introdução ao Código Civil. Além disso, o dispositivo em questão atenta contra os anseios da Constituição da República de 1988 de busca da dignidade da pessoa humana, igualdade e liberdade. E, por fim, é oportuno demostrar a ponderação feita pela doutrina autorizada sobre esse assunto: “(...) no Brasil, acima dos 70 anos é possível ser Presidente da República e Presidente do Congresso Nacional, interferindo diretamente nos rumos de toda a nação e, no entanto, não é possível escolher o regime de bens do casamento.” (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2012, p. 173).

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